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Sabotagem

  • Writer: Clara Goncalves
    Clara Goncalves
  • Aug 27, 2023
  • 2 min read

Tenho notado uma mania terrível em mim mesma: dia após dia, me afasto de tudo aquilo que amo fazer como se fossem uma praga do Egito. Adoro escrever, mas evito fazê-lo. Amo ver amigos, mas não os chamo. Sou apaixonada pelos textos de Clarice, mas recentemente tenho evitado ler as suas palavras. Elas mexem demais comigo.


É como se eu evitasse a felicidade a cada instante, mesmo as menores felicidades, aquelas do dia a dia. Me isolo, me forço a ser prática e a resolver coisas. Passei a última madrugada fazendo planilhas. O dia de hoje foi gasto em faxinas, lavagem de roupa, cuidados com as unhas que continuam feias. Só agora, de madrugada (sempre ela) me convenci a sentar e escrever. "Diga qualquer coisa, apenas diga algo!"


Outro dia, numa dessas sessões de sabotagem, passei horas a fio vendo vídeos bestas no TikTok. É como se alienar-se com vídeos bestas fosse a minha droga favorita. Não curto perder o controle sobre mim e viajar com balas ou cogumelos, mas me dê um celular e eu sou capaz de jogar a minha vida fora. Voltando ao ponto: TikTok. A nossa nova fonte de verdades absolutas, a filha do Whatsapp e da mamadeira de piroca das gerações mais velhas. Esse aplicativo, onde eu mesma me sinto velha todos os dias, criou para mim a sensação de que existem muitas outras Claras espalhadas pelo mundo, vivendo exatamente como eu vivo e que, por isso, está tudo bem jogar a minha vida fora. Afinal, se todo mundo faz isso, não deve ser tão grave. Mas eu não sou todo mundo, já dizia mamãe.


Nesse dia específico, vi uma moça equilibrar o celular em uma selfie para compartilhar uma revelação que teve: a de que os nossos traços mais tóxicos são justamente o oposto do que seria a nossa linguagem do amor (conceito que não entendo muito, nem sei se quero entender). Aquilo bateu em mim. Me isolo para evitar ver quem eu amo? Não escrevo, para evitar a dor de expressar sentimentos que ficariam melhor escondidos? Qual o sentido disso, eu? E aí lembrei de todas as vezes que evitei fazer o que eu mais queria: cantar, quando criança. Não quis fazer um curso, me aperfeiçoar. Tinha medo de descobrir que não era boa o suficiente. E atuar? A mesma coisa. Corri pro jornalismo, pro factual. Ser ruim ali doeria menos? Possivelmente. Na adolescência, numa peça de escola, abri mão de um papel que queria para não magoar uma amiga. Por que? Porque eu evito. Eu sou uma evitadora.


Será essa fase apenas uma continuação dessa mania maldita? Desse hábito desgraçado? Ah, Clarice. Você entenderia.


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Para todos verem: Imagem revela um kindle aberto em uma página de Água Viva, de Clarice Lispector. Um trecho do livro está em destaque, e diz: "O horrível dever é o de ir até o fim. E sem contar com ninguém."

 
 
 

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