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Os meus dias perfeitos

  • Writer: Clara Goncalves
    Clara Goncalves
  • Apr 20, 2024
  • 3 min read

Trabalho de casa há muitos anos mas, até a pandemia, eu frequentava religiosamente espaços de co-working. Tinha a necessidade de recriar o clima de redação jornalística para funcionar enquanto trabalhava. Gostava de ser interrompida por um convite para um lanche e não me incomodava com o barulho alheio enquanto preparava documentos ou lia e-mails. Acredito que nessa fase era uma pessoa extrovertida. Hoje, já não tenho tanta certeza.


Com a pandemia, deixei o co-working para trás, me mudei para viver totalmente sozinha pela primeira vez, e depois pela segunda. Criei um escritório só para mim nos dois apartamentos. No escritório atual, há uma parede metade branca, metade de um laranja queimado. Tenho uma mesa preta que coloquei em frente a um janelão que dá de cara para a floresta. Do meu lado esquerdo, enquanto trabalho, minha cachorrinha fica deitada em um sofá azul que comprei anos atrás na Tok Stok. Não muito confortável, mas belíssimo. A cadeira que uso para trabalhar é uma cadeira gamer, bastante confortável, mas ainda fujo com o laptop para a sala de vez em quando e trabalho do sofá.


A minha rotina e a minha relação com o trabalho e com os meus dias mudaram completamente. No começo, eu relutava, acabava trabalhando demais para preencher os dias. Depois, consegui encontrar um ritmo mais desacelerado. Sou profundamente privilegiada por essa possibilidade, o tamanho do conforto não se mede. Graças a essas condições, posso viver uma vida mais devagar, com muito menos pressão e muito mais tempo de convívio com Nina Simone, minha canina amada. Embora positivo, sinto que esse arranjo também me tornou mais solitária e agora, diferentemente do meu eu do passado, tenho gostado de trabalhar e estar assim. Mas há um peso social, e isso estava me incomodando nos últimos meses.


O sentimento era de culpa. Como pode, eu, uma mulher relativamente jovem, saudável, viver assim e achar que isso é possível e normal? Claro, é possível, e é resultado de um novo modelo de trabalho atrelado às minhas próprias preferências. Se é normal, aí não sei. No último mês eu fiquei doente, num verdadeiro embalo de virose atrás de virose e essa chateação se intensificou diante da minha incapacidade de fazer atividades com outros seres humanos.


Apesar disso, gosto da minha rotina -- de acordar com calma, dar bom dia para a Nina, escrever no meu diário enquanto tomo um café. Gosto de descer levando o lixo e passear com Nina, bater papo com as pessoas pelo caminho. Gosto de comprar pão na volta, fazer um almoço preguiçoso e começar a ler emails e me preparar para as reuniões do dia. Gosto de poder ir à academia no meio da tarde se tudo estiver calmo, trazer frutas no caminho, tomar banho e continuar com as minhas tarefas. Gosto de dar mais uma volta com Nina no fim do dia, cuidar da casa, tomar mais um banho, ver uma série e ler mais umas páginas do meu livro. Essa flexibilidade me traz felicidade, apesar da culpa.


Hoje vi Perfect Days, do celebrado diretor Wim Wenders e fiz as pazes com a simplicidade da minha rotina, com o meu desejo de estar só, com a paz que eu encontro dando um passeio pela lagoa. Em Perfect Days acompanhamos Hirayama, um senhor japonês que vive uma rotina simples e solitária em meio a um universo de escolhas infinitas e possibilidades sufocantes. Me encantei pelo personagem belamente interpretado por Koji Yakusho. Hirayama vive através da arte que consome, das fitas que gosta de ouvir, das plantas que cuida com esmero e da sua dedicação a um trabalho simples e essencial. Ele não se preocupa com luxo ou a opinião alheia. Vive autenticamente uma rotina como a de tantos outros, mas diferente do que estamos acostumados a experimentar. Hirayama é capaz de ver beleza no farfalhar das folhas nas árvores no parque onde almoça e em limpar com esmero os banheiros públicos da cidade de Tóquio.


Entre dias comuns e a repetição dos rituais, alguns encontros inesperados acontecem e nos ajudam a compreender melhor a vida e as escolhas do protagonista. Perfect Days é um filme delicado, com uma passagem de tempo sutil e poucas, mas certeiras palavras. Lembrei da delicadeza de Celine Song com Past Lives. Assistindo à Hirayama, fiz as pazes, de certa forma, comigo mesma. Talvez a minha vida não seja um saco, como tenho achado que é recentemente. Talvez me falte apenas uma certa dose de encanto para encontrar a beleza no banal. Talvez eu só precise colorir a realidade um pouco.



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