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O relógio

  • Writer: Clara Goncalves
    Clara Goncalves
  • Aug 20, 2023
  • 3 min read

Updated: Jan 4, 2024

Nunca fui uma usuária de relógios antes da era dos smartwatches. Tendo um celular em mãos desde os meus 9 anos de idade, sempre me pareceram dispensáveis, um custo sem grandes benefícios.

Em 2021, comprei um relógio "inteligente" desses baratinhos, interessada em medir de maneira um pouco mais apurada quantos passos eu dava por dia em meio à uma pandemia que me enlouquecia. Eu adorava aquele relógio. Andava com ele para cima e para baixo. Quando sentia alguma mudança física, já bastante paranóica, recorria a ele para verificar se a minha saturação estava normal ou se eu estava morrendo.

Foi graças a ele, inclusive, que convenci meu pai a ir ao hospital quando houve um pico de casos de influenza na cidade – que aconteceu, é claro, durante a pandemia de coronavírus porque desgraça se acumula. Ele se sentiu mal, mas não se convenceu de que era algo sério. Apenas quando viu no pequeno monitor que coloquei em volta do seu braço apontando que ele estava com batimentos cardíacos em 150 por minuto deitado, ele ouviu o meu pedido. Fomos à emergência de um hospital próximo. Ele estava com gripe e a febre fez com que seu coração perdesse o compasso. Chegamos num bom momento para que tudo fosse controlado sem maiores dramas graças ao meu relógio.

Numa manhã em 2022, senti falta do meu amigo. Dei mole – deixei o relógio na mesa de canto da sala e a minha cachorra julgou seria uma delícia mastigá-lo. Foi o fim da nossa parceria. Fiquei quase um ano sem um relógio. E foi tranquilo. Mas eu sentia falta de saber quantos passos dava,

meus batimentos cardíacos,

os quilômetros andados,

as calorias gastas,

os informes semanais!

Sentia falta do controle do tempo,

dos passos,

de mim.

Passei meses pesquisando por um novo smartwatch. Gosto muito da Apple, mas não compraria um Apple Watch. É caro demais e eu sei que perco as coisas. Quando não as perco, meu cachorro tende a mordê-las. Enfim, encontrei um. Boa tela, bom aplicativo, funções e preço. Chegou aqui em casa em julho e, por três semanas, retomei o controle da minha vida. Voltei a pedalar, a fazer longas caminhadas, a malhar com afinco – tudo ia tão bem! Até que, em meio à uma emergência veterinária, o perdi antes de completarmos um mês juntos. Com o descontrole da situação com a minha cachorrinha, perdi também o controle sobre mim.

Tudo voltou a ficar confuso, perdi a noção de rotina, não sabia mais quantos passos dava nem nada sobre os meus batimentos. Me revoltei comigo mesma. Como pode uma mulher adulta perder as coisas assim, quase compulsivamente? Nada dura comigo. Parece que eu faço de propósito! Procurei meu companheiro de controle por cada cômodo, cada canto, cada fresta. Olhei dentro de bolsas, de bolsos, da geladeira.

Deitada no sofá com raiva de mim mesma, lembrando o quanto eu procurei o bendito relógio pela casa toda, ouvi uma vibração que não vinha do meu celular. Comecei a desmontar o meu sofá atrás do barulho discreto. A procura já tinha completado duas semanas e eu estava ficando um pouco maluca. Nada do relógio, mas a vibração estava próxima, eu sabia. Foi colocar a mão entre o braço do sofá e o encosto e eu senti uma ponta. Enfiei o braço com afinco – ACHEI!

Meu relógio. Meu controle. Tudo faz sentido de novo. Preciso contar para a minha terapeuta.


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