Leituras de Fevereiro
- Clara Goncalves
- Feb 29, 2024
- 4 min read
Apesar dos últimos posts desastrosos, um aspecto vai muito bem na minha vida recentemente: a leitura! Tinha me proposto a ler dois livros por mês em 2024 e, até o fim de fevereiro, tenho conseguido ler o dobro. Encontrar livros maravilhosos ajudou muito no processo, assim como organizar a minha rotina, conforme descrevi aqui. Mas sem mais delongas, vamos aos livros, em ordem reversa de leitura:
1 - Afetos Ferozes, de Vivian Gornick
Este livro não foi uma escolha minha, mas sim de um clube do livro do qual participei pela primeira vez ontem. E já sou grata por indicarem este maravilhoso livro de memórias escrito pela ensaísta americana Vivian Gornick pelos idos dos anos 80. Afetos ferozes remonta a complexa relação entre Vivian e a sua mãe ao longo dos anos, da infância à vida adulta.
Começamos a entender a complexidade das relações logo de início, e o espaço que a mãe ocupa em sua psiquê também. O cenário inicial é um prédio no Bronx, em Nova York. Vivian comenta:
“Mal me lembro dos homens. Eles estavam por toda parte, lógico — maridos, pais, irmãos —, mas só me lembro das mulheres. E na minha memória todas são rudes como a sra. Ducker ou ferozes como a minha mãe".
Ao longo dos anos, ambas desenvolvem uma relação difícil, de dependência emocional e ressentimento. Espelhos uma para outra, revelando tudo aquilo que não queriam ver jamais. Na convivência entre as duas também entra outra mulher, uma vizinha que parece agir e viver fora das duras expectativas femininas do pós-Guerra, fazendo um contraponto direto ao que é representado pela mãe. Ali, entre a moral e o sexo, cresce Vivian.
Não é um livro de finais felizes. Trata-se de um resgate de memórias guardadas ao longo de uma vida não totalmente realizada. Vivian é uma autora bem sucedida e de talento imenso, capaz de descrever cenas sem diálogo de maneira visual e quase sufocante. Este livro mexeu comigo, foi uma experiência reveladora: hora de se desfazer das dependências e dos ciclos repetitivos. Antes que seja tarde demais.
2 - Minha querida Sputnik, de Haruki Murakami
Nunca havia lido nada de Murakami e senti raiva de mim por ter demorado tanto. Que prosa maravilhosa! Minha querida Sputnik é um mistério delicioso. No livro, somos presenteados com um triângulo amoroso impossível, puramente platônico — e, talvez por isso, tão intenso — e um Japão urbano e sofisticado. O narrador é um jovem professor que conta a sua história de amor pela sua melhor amiga, a aspirante a romancista Sumire que, por sua vez, apaixona-se por uma mulher quase vinte anos mais velha, Miu.
Através dos olhos do narrador, enxergamos os encantos de Sumire e, através do olhar dela, os de Miu. Em determinado momento, algo misterioso acontece com os protagonistas e experiências quase sobrenaturais envolvem os três.
Certos trechos do livro revelam desaparecimentos e realidades que se desdobram em múltiplos planos. A trama me lembrou um pouco Amiga Genial, de Elena Ferrante, em que uma das personagens principais expressa que sempre teve o desejo de sumir sem deixar rastros.
3 - Aos Prantos no Mercado, de Michelle Zauner
Mais um na temática mãe e filha: também uma relação complicada, também um livro de memórias. Aos Prantos no Mercado é o best-seller escrito pela cantora de rock Michelle Zauner. Trata-se de um relato honesto sobre o luto precoce vivido após a morte da sua mãe, com quem tinha uma relação complexa e de quem o amor, muitas vezes, vinha em forma de comida.
Michelle nos conta como foi crescer com os pais em uma cidade pequena nos Estados Unidos. O pai, um homem americano, é uma figura quase secundária. A mãe, uma mulher coreana que migrou com o marido para viver nos Estados Unidos, era quem ocupava a centralidade emocional na vida de Michelle, apesar dos conflitos e diferenças.
Michelle narra os últimos momentos vivendo com a mãe e as tentativas em remendar os pontos dolorosos da relação através da gastronomia. A escrita de Michelle é sensível e crua, repleta de afeto, e me levou a lugares que eu jamais visitei e à situações que nunca vivi. Me impressionou muito a descrição das durezas do luto e os processos que são implacáveis, apesar de necessários. Muito impressionante que este seja seu livro de estreia.
4 - A Cachorra, de Pilar Quintana
A única leitura que não gostei neste mês só tem 80 páginas. É um livro curto e muito poderoso, mas não me encantei pela história. Vi potencial em um resumo sobre o livro da colombiana Pilar Quintana, mas não me conectei ao livro, que é uma alegoria sobre a maternidade. A Cachorra conta a história de Damaris, uma mulher simples cuja vida foi marcada por tragédias e a tristeza por nunca ter tido filhos. Certo dia, num impulso, ela decide adotar uma cachorra da ninhada de uma vizinha, e investe nessa relação um amor reprimido que aflora instintos protetores e violentos. Embora tenha admirado a capacidade da autora de retratar esses impulsos paradoxais e muitas vezes ignorados pela sociedade, me senti incomodada com A Cachorra. Mais incomodada que encantada.
5 - Bônus do fim de janeiro: Fim, de Fernanda Torres
Maravilhosamente escrito, Fim é centrado no fim da vida de um grupo de amigos cariocas que recordam momentos marcantes das suas vidas. Entre os amigos estão figuras diferentes, mas extremamente comuns. Todos homens ordinários, que encontramos pelas esquinas da Zona Sul do Rio de Janeiro aos montes. Fernanda nos transporta em uma vigem maluca em que podemos explorar a psiquê de cada um, suas experiências, frustrações, invejas. Os fatores externos, o século XX, o envelhecimento, a solidão, as mulheres, o sexo. Foi sensacional ver a capacidade da autora em expressar-se como um senhor de 80 anos à beira da morte, assim como um garanhão se afundando em drogas, entre tantas outras personalidades. Confrontar o fim com o humor de Fernanda Torres — um presentasso.





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